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As misteriosas cartas de James McNewman

Abel Sidney

O caso, o futebol e um torcedor especial

Encontrei o Padre Ricardo pela última vez no pátio do Colégio Dom Bosco. Íamos jogar bola no campinho que existia ao lado do salão paroquial e ele me chamou à prelazia. Seria a nossa despedida. Fora transferido para uma das tantas cidades de Minas Gerais. Estreitou-me nos braços, deu-me umas orientações e fez um pedido: “Filho, o meu desejo será vê-lo escrever. Continue se exercitando. E se possível, transforme o caso do Carneiro Dias em uma verdadeira história um dia...” Prometi. Abracei-o e fui ocupar a única posição que me cabia no futebol: o gol.

Muitos anos depois encontro um primo de segundo grau do Carneiro Dias e lembrei-me então da promessa feita. Reavivei a história, narrando-a para ele. Eu estava em Porto Velho a negócios e descobri-o, por acaso, num órgão do governo, onde fora buscar uma certidão negativa. Confirmado o parentesco, fomos ao Almanara almoçar. Os donos, uns libaneses extremamente gentis, permitiram a nossa longa permanência no local. Saímos de lá ao anoitecer. Para recompensá-los, consumimos todo o suco de cupuaçu e açaí. Nesse ínterim, contei-lhe o estranho caso e prometi enviar pelo correio as cópias das cartas, que era a prova documental da tão inverossímil história.

O curioso é que eu a ouvi do Padre Ricardo em três longas sessões ou capítulos. Ele, muito detalhista, abria muitos parênteses e fazia digressões riquíssimas quando tratava das pessoas e coisas da Amazônia, o que alongava um pouco os seus casos. Eu e uns poucos amigos, tínhamos o privilégio de freqüentar a sede da paróquia aos domingos. Não éramos coroinhas ou os alunos mais bem comportados. Não havia mérito, mas afinidade. Ele gostava de nossas aventuras e de nossa não tão inocente rebeldia juvenil. Ouvia o relato de nossas estripulias, ria e repreendia os excessos cometidos. Isso tudo acontecia durante as partidas de futebol de botão. Chegamos a fazer um campeonato, com direito a troféu, refrigerante e um juiz imparcial - o próprio padre. O futebol era a sua paixão, às vezes, nada secreta. Na Vila de Rondônia daqueles dias o único meio de comunicação era o rádio. Ele tinha um daqueles que sintonizavam até a Rádio do Vaticano. Mas era evidente que nossa sintonia era a Rádio Tupi e os campeonatos carioca e brasileiro. Um dia, o bispo da capital, linha dura, visitava a cidade e nos surpreendeu em plena partida. Padre Ricardo, muito tranqüilo, saiu-se com essa: 'Monsenhor, sei que o senhor tem também os seus pontos fracos, seus pequenos vícios. O meu, como vês, é esse...' Foi absolvido e ainda por cima ganhamos um torcedor especial.

Os soldados da borracha

O Padre Ricardo começou a história assim: “Será necessário uma pequena digressão antes de me encontrar com o personagem que lhes vou apresentar.
Os soldados da borracha vieram para a Amazônia durante a 2a Guerra Mundial. O governo de Getúlio Vargas, depois de muito relutar, decidiu participar do grande confronto. Criou-se a Força Expedicionária Brasileira - FEB e os nossos pracinhas (assim eram chamados os soldados) foram para a Itália combater os alemães. Um outra frente de batalha travou-se aqui no próprio Brasil. Em apoio aos aliados, coube ao país abastecê-los com um dos produtos escassos na época: o látex, que como vocês sabem, era a matéria prima para a fabricação de pneus. [Esse como vocês sabem era mais que figura de retórica, era bondade mesmo... Depois das aulas, para compensar a nossa ignorância, ele nos emprestava uns livros de sua grande biblioteca.] Ora, o látex, extraído das seringueiras, era encontrado, nativo, em praticamente toda a Amazônia. O embarque dos soldados da borracha aconteciam principalmente nos portos do Ceará. Aos milhares, esses soldados sem armas, provinham dos estados vizinhos e do próprio Ceará. O desembarque dos soldados se estendia por toda a região norte. Belém, Manaus e Porto Velho eram os principais pontos. Manaus, inclusive, vivera nas últimas décadas do século dezenove, o seu esplendor da borracha. Esse primeiro ciclo da extração do látex alcançou o seu apogeu com a construção do Teatro Amazonas, roteiro das grandes companhias de ópera da belle époque

Bem, como é de se deduzir, meus caros amigos, o Carneiro Dias (nome pelo qual fazia questão de ser chamado) era um daqueles milhares de soldados da borracha. O que o distinguia dos outros, era sua descendência. Filho de uma das tradicionais famílias cearenses, cursara o seminário, donde fora expulso pela sua incorrigível irreverência. Amante das letras compunha lá as suas trovas e escrevia umas matérias num jornal de esquerda.

A própria família desconhecia o seu embarque. Deixara uma carta para a mãe, dizendo que faria uma breve viagem e voltaria dentro de uns dias. Que ela não se preocupasse, pois teria notícias. Tiveram, mas tanto tempo depois, que nada puderem fazer para tê-lo de volta. A primeira carta enviou-a de Belém, a segunda de Manaus e a última, um ano depois, já instalado em Porto Velho. Exceto a mãe, que o aceitava incondicionalmente, a família fingiu-se preocupada, remeteu-lhes algumas cartas e descansou tranqüila ao saber que não retornaria. “

Luigi, Raimundo e Iracema

“Eu o encontraria dez anos depois de sua vinda para a região, numa comunidade ribeirinha, às margens do Rio Madeira, num ponto próximo a foz do Rio Machado. Uma missão de franciscanos criara um posto avançado de evangelização naquele local de tão difícil acesso. Um dos monges, frei Luigi, italiano bonachão e com uma barriga mais jesuíta que franciscana, levara o seu amor ao próximo a um desses extremos da solidariedade humana. Frei Luigi, filho de uma rica família italiana pedira dinheiro para os pais e amigos distantes, para construir o que chamou de sua 'modesta moradia'. Escreveu alegando que as condições adversas dos trópicos exigiam materiais somente encontrados em Manaus e muito caros. Por isso pedia alguns milhares de liras. O dinheiro chegou e ele construiu um imenso hospital para os leprosos, que existiam por toda a região, abandonados à própria sorte (ou azar...). Entre um gole e outro de vinho que bebericávamos juntos nos finais de semana, ele contava e recontava o caso, gesticulando e rindo à italiana. Carneiro Dias, tornara-se comerciante. Comprava seringa e castanha e as revendia em Porto Velho. Personalidade irrequieta, quase nunca descansava, em meio aos tantos afazeres que inventava para ocupar-lhe o tempo. Morava numa casa especialmente desenhada pelo frei Luigi, esse um autêntico homem-faz-tudo, prático e sonhador. A casa, construída em paliçada, para fugir às enchentes do rio, era extremamente confortável para os padrões da época e do local. Casara com uma cearense, a Iracema (nome muito popular na época), cujo marido morrera de malária. Mulher pouco instruída, encontrou nele um paciente professor. No afã de ensiná-la, acabou por criar uma pequena escola, onde ministrava as primeiras lições do alfabeto a muitos e aulas especiais àqueles que se destacassem. Os padres que chegaram à região depois dele, o ajudavam na escola. A única condição que impunha era que o catecismo fosse dado na própria igreja. Materialista, não era dado às coisas da fé, embora sem alarde, fosse generoso com suas doações ao hospital e à própria igreja.

Um certo dia, depois da aula (eu também era professor), ele pediu que eu ficasse um pouco mais. Voltara de Porto Velho naquela manhã e seu semblante denunciava que alguma coisa grave ocorrera. Perguntei-lhe se acontecera alguma coisa. 'Uma tragédia', foi o que conseguiu dizer, antes de soluçar como um menino. Abracei-o e deixei que chorasse à vontade. Contou-me, depois mais calmo, que a sua esposa morrera no momento do parto. Ela e o filho. Reconfortei-o como amigo e deixei-o a sós com sua imensa dor. Nos dias que se seguiram tive que substituí-lo em suas aulas, pois não se sentia em condições de ministrá-las. Deixara crescer a barba e corria um boato pelo povoado que ele vagava, como um louco, pela noite, mato adentro, nos caminhos da seringa, sem um canivete sequer. Quando vinha o dia não era raro encontrá-lo dormindo até tarde. Uma só pessoa ele permitia interpelá-lo nesses momentos: um dos meninos a quem se afeiçoara. Raimundo. Para ele ensinava francês e latim. E aí de quem o chamasse de apelido na sua frente! Nada de Mundico, Raí, Mundinho ou qualquer outra variação. Dizia ao menino que Raimundo era um nome nobre, embora tão comum entre os nordestinos e amazonenses. Que ele nunca tivesse vergonha do próprio nome, etc, etc. Era assim os seus sermões... Pois bem, mesmo às voltas com sua dor, não dispensou o Raimundo das aulas. Era o fio que ainda o retinha à vida.

Numa noite, eu me preparava para dormir e me aparece o Raimundo. Em total descontrole emocional, falando, chorando, tentando me arrastar para fora. Acalmei-o, energicamente, e pedi que repetisse tudo, pausadamente. O que ele me contou era de extrema gravidade. Lera no diário que o Carneiro escrevia diariamente, que ia 'embora dessa vida sem sentido', assim mesmo, textualmente, pois que o Raimundo tinha uma memória prodigiosa (não poucas vezes o assisti recitar textos inteiros das lições estudadas). Quando, era o problema, comentei com ele. Depois que terminasse o seu testamento (e o Raimundo era seu único herdeiro) e fechasse uns negócios que deixara pendentes em Porto Velho, informou-me o menino. Respirei um pouco mais aliviado. A lealdade daquele adolescente que não pensava duas vezes em dispensar toda aquela fortuna, me comoveu profundamente. Mas não havia tempo a perder. As emoções e outras considerações poderiam muito bem esperar um momento mais oportuno. A questão era saber como salvá-lo. Espírito resoluto, não costumava voltar atrás nas suas decisões, a não ser que um motivo bastante forte o demovesse. Não era de dobrar-se aos sentimentos. E as últimas reservas de sentimento que lhe restava estava gasta, pois deixara todos os seus bens para o Raimundo. Eu tinha certeza que esse era o seu tortuoso raciocínio. Se à única pessoa que o prendia a vida, estava deixando sua pequena fortuna (terras, casas na capital e dinheiro), nada mais havia que o pudesse prender aqui. Contar-lhe que soubéramos de tudo, seria uma invasão de privacidade imperdoável aos seus olhos, o que o precipitaria a tomar a decisão que estávamos tentar evitar. Confesso que nunca havia rezado tanto antes. Os meus problemas ou os alheios até aquele momento, naquele pequeno povoado perdido da Amazônia, eram simples de se resolver. As pessoas mais simples, meninos, não têm o que se chama por aí de problemas existenciais. Se eles existem são de simples solução, nada que a confissão (que é uma catarse) e uma boa conversa não resolva. Mas não era este o seu caso. Carneiro era um intelectual, lera os existencialistas franceses e costumávamos filosofar em um ou outro sol poente. Por mero diletantismo, por puro prazer. Embora as nossas linhas de pensamento se diferissem tanto, tínhamos muitas coisas em comum. A paixão pelas línguas, por exemplo. Não poucas vezes exercitávamos o nosso já pobre francês, para desespero da pobre Iracema, que ficava ali, na varanda, olhando a mata distante e sonhando com outras paisagens. De quando em quando, despertava de seus devaneios e nos encontrava ainda falando o que ela chamava de 'língua afeminada'. Procurava o que fazer, bem longe dali.

Aquela foi a mais angustiosa noite de minha vida. Orei, li os Salmos, busquei as sábias palavras de Santo Agostinho nas suas 'Confissões' e por fim adormeci. Na madrugada, acordei com uma sensação de completa leveza. A impressão era que a manhã daquele verão úmido nascia mais fresca, cheia de brisa. Eram coisas cá de dentro, de um coração sossegado. O fato era que o plano inteiro estava delineado na minha cabeça. Em todos os detalhes, como se me fora entregue por um desses anjos noturnos, num único bloco. Despertei o Raimundo que dormira na rede ao lado e contei-lhe o plano. Ele ouviu, entusiasmou-se e nos sentamos para detalhar o que cabia a cada um fazer. [O leitor do Sherlock Holmes começava a se manifestar. Era sempre assim: ele ia narrando tudo com muita clareza até que as coisas começavam a ficar turvas; pedia que prestássemos mais atenção e de suspense em suspense, de mistério em mistério, ia deslindando as histórias. Quando ele as interrompia, por causa da missa, íamos embora contrariados. Ele ria e pedia para não perdemos o próximo capítulo. E assim ele ia nos cativando, letra a letra, literalmente...]

No dia seguinte uns dos seringueiros do povoado chegaria de Porto Velho. As correspondências viriam com ele. O Raimundo deveria interceptá-lo numa curva distante do rio para não levantar suspeitas. Retornou logo após o almoço, faminto e feliz. Conseguira. O Nonato saberia guardar segredo, contou-me. A carta estava devidamente amassada e falsamente carimbada, graças às mãos mágicas do Luigi. Serviço perfeito.

Como a carta era destinada a mim, abri-a e deitei-me para ler, depois de recebe-la da mão do próprio Carneiro Dias. Saboreei cada palavra escrita, num ato de confessável vaidade. Persignei-me e pedi perdão a Deus pelo tolo sentimento, já que o mérito não era inteiramente meu. Eu era apenas um dos agentes a serviço daquela causa nobre. Ri de mim mesmo e tratei de colocar o plano em ação. Eu tinha tanta certeza de que o plano era infalível, que não continha a minha excitação em vê-lo em execução.

Entreguei a carta ao Carneiro Dias e esperei o efeito. Não tardou a indagar: 'Sim e o que o senhor deseja de mim?'. Bem, disse a ele, este é um caso que você pode nos ajudar a resolver. Não deve ser um caso isolado o problema do nosso amigo Cabrinha. Logo ele que é o mais animado dos internos (eu não costumava usar a palavra leproso pelo peso de preconceito que ela carregava...). Se ele está esmorecendo, imagine os outros. E você sabe o que o mau humor pode causar a um doente como os nossos! Morrer de tristeza é a pior tragédia para um homem... É pior que o próprio suicídio (disse isso para tocá-lo, de propósito, embora pensasse o contrário). Ele me olhou profundamente, tocou-me os ombros e disse, resoluto: 'O que estiver ao meu alcance, farei. Conte comigo!'. Eram exatamente aquelas palavras que eu esperava ouvir. Contei-lhe então o meu plano. Aprovou. Começaria naquele dia mesmo a escrever as cartas.

No entardecer daquele mesmo dia, o Carneiro foi me encontrar meditando à beira do rio, próximo à sagrada hora do Ângelus. Tocou-me os ombros. Meus ouvidos conheciam os passos de cada um dos meus fiéis. Ou infiéis. E ele costumava tocar-me o ombro e esperar calmamente que eu lhe dirigisse a palavra. Convidei-o a sentar-se. Ele respeitava os meus rituais, dos quais eu abdicava quando necessário, em especial quando se tratava dele. Disse-me que não estava conseguindo escrever nada. Que não podia ser hipócrita, que era o seu coração que lhe ditava as palavras, que trapacear, também não era nada cristão... Contestei-o, dizendo que em certos casos especiais, a farsa e mesmo a mentira são permitidas por Deus, que, aliás, escreve certo por linhas tortas. As linhas que ele iria escrever seriam exatamente aquelas, as tortas. Rimos muito. Ele então, confessou, que na verdade ele não estava conseguindo reproduzir o estilo do tal padre escocês. E que falar de Deus (esse era o ponto central, na verdade) para quem não acreditava em sua existência era muito difícil... Abracei-o e caminhamos de volta para o povoado. Um outro dia ele mesmo havia me dito em tom de quase confissão que só me ouvia falar das coisas de Deus devido ao certo 'senso poético com que eu lidava com as palavras'. Fingi não dar maior atenção àquela mesura, embora secretamente, me agradasse sabê-lo. Lembrei-lhe o fato e disse que ele também poderia fazer-se poeta. À maneira escocesa. Já que seria ele mesmo quem iria fazer a leitura das cartas, o seu padre escocês poderia ser do jeito que mais que lhe conviesse. Dei-lhe, então, inteira liberdade para contar o que quisesse na carta, sem qualquer censura. Gostaria de lê-las em primeira mão, apenas para ter o privilégio de me deliciar com elas, antes dos internos. Convidou-me para comer o tambaqui que pedira ao Raimundo para preparar. Na brasa, regado ao vinho branco que guardava para as ocasiões especiais.

No meu claustro (na verdade, um quarto com uma estante improvisada, uma rede e um velho armário), quedei-me no mais profundo silêncio, interrompido apenas pelo soar do meu nariz, causado pelas lágrimas, dessas de alegria, que teimavam em cair. Deus e suas linhas tortas. E eu ali, rindo como um menino que aprendia mais uma lição.

O semblante do meu velho amigo no jantar era outro. O plano foi detalhado, por nós dois, em extremo, ponto por ponto. Raimundo, com todo aquele ar de inocência que sabia muito bem improvisar, fazia-se de desentendido e fazia as perguntas mais disparatadas. O Carneiro, com ar de mistério, dizia que iria contar-lhe tudo no outro dia, mas com uma condição: em francês. Na sua didática peculiar, inventava esses expedientes.

Capítulos irregulares

O padre Ricardo, como se vê, era irregular nas divisões dos capítulos das histórias que contava. O que nos causava uma ansiedade imensa. Durante a semana, em suas aulas no Dom Bosco ou no Marechal Rondon, lá íamos nós perturbá-lo. Para tentar arrancar nem que fosse somente alguns detalhes a mais da história, brincávamos fazendo o papel de ajudante de professor. E tanto o perturbávamos oferecendo-nos para buscar giz, apagar o quadro, carregar a vitrola e os discos do padre Zezinho, que ele cedia um pouco e contava mais um pouco da história. Descobri mais tarde que ele contava apenas umas poucas tramas paralelas ou acrescentava um outro capítulo à história apenas para nos satisfazer. A trama verdadeira, permanecia intacta. Devo esclarecer que algumas histórias eram histórias mesmo, verdadeiras, embora temperadas com alguns acréscimos (ele pedia a Deus para o perdoar...). Outras eram pura ficção, mas nem por isso, deixavam de ser verossímeis. Tanto que o dia em que ele nos contou, todo contente, que aquela era uma história, logo verdadeira, não acreditamos.

As misteriosas cartas

“A primeira carta foi a mais difícil de escrever. Ele passou exatos três dias debruçado na mesa, rasgando folhas, rasurando, apagando, rescrevendo. Raimundo, discípulo fiel ali ao seu lado. Eu o visitava algumas vezes ao dia para ver a quantas ia a carta. Disse-lhe brincando: 'Carneiro, você não está escrevendo para intelectuais, mas para doentes; use palavras simples, frases curtas; o negócio é tocar-lhes o coração...' Ele, meio irritado, devolveu: 'E você pensa que é fácil escrever para as pessoas simples? Sabes que não! É mais fácil escrever um tratado filosófico que uma simples carta de condolências!' Senti que ele estava exaltado e afrouxei o cerco. Concordei e pisquei para o Raimundo. Era a vez dele perturbá-lo: 'É verdade, professor, que esse tal padre escocês de Manaus é mesmo um verdadeiro poeta?'. O Carneiro não se conteve: 'Espera aí, o que vocês desejam afinal? Assim eu não consigo escrever nada! Que tal vocês dois darem um passeio por aí, hein?' Disse que era uma excelente idéia e o deixamos em paz.

No dia seguinte, com toda pompa, assistimos no grande pavilhão do hospital à leitura da carta do velho padre escocês que visitara o povoado uns dois anos antes. Todos se lembravam de seu senso de humor e de sua estranha brancura. O Carneiro começou assim:

“Manaus, doze de abril de mil novecentos e cinqüenta e sete.
Caros irmãos em Cristo,

É uma honra poder escrever-lhes. Sinto uma imensa saudades de todos vocês. Escrever, é hoje uma necessidade, meus irmãos. Sofri uma queda e os médicos me recomendaram seis meses de absoluto repouso. Repouso do corpo, porém, não significa inatividade da alma. Um amigo nosso, professor de literatura brasileira, me sugeriu que lhes escrevesse. Dessa forma, treinaria o meu português, que é horrível e seria uma forma de lhes fazer sentir mais próximos de Deus.

Muito bem. E como vamos, meus irmãozinhos? Vocês tem mantido acesa a chama da fé, da esperança e do amor, conforme nos recomenda o apóstolo Paulo? [Carneiro carregava no sotaque, para dar maior veracidade à leitura!] Eu não mais me levantarei dessa cama, se souber que vocês andam descrentes de Deus... Vocês não gostariam de me ver entrevado, gostariam? Ainda mais eu, um grandalhão de quase dois metros. Vocês não sabem o trabalho que estou dando para os meus amigos enfermeiros. Eles me dão banho, fazem-me curativos e com umas varinhas coçam os locais que o gesso não me permite coçar com os dedos. E olhe que eu tenho dedos enormes, lembram? Mas não adianta... Ouso confessar, na condição de doente, como vocês, meus irmãos, que existem coisas muito vexatórias para os enfermos. Um dia desses, imagine os meus amigos a minha vergonha, o lençol que me cobria as partes íntimas deslizou, caiu ao chão e eu acordei praticamente nu. Eu não sabia onde enfiar a cara (essa expressão enfiar a cara é tão engraçada, não é?) Eu escondi o rosto no travesseiro e só com muito custo voltei a olhar as enfermeiras que me vieram trazer a sopa. Estou num hospital da Ordem das Carmelitas Descalças e elas têm me tratado muito bem. Não pensem os senhores que existam apenas enfermeiras. Infelizmente, não. Os enfermeiros daqui, meus amigos, não tem as mãos tão sedosas como as das enfermeiras. Uma das enfermeiras, a quem considero como verdadeira mãe, tem uma mão tão delicada e santa, que a beijo todos os dias, em estado de profunda reverência...

Muito bem, meus amigos, mas vamos ao alimento espiritual do dia. Aliás, vocês tem lido o Novo Testamento? Leiam, vos peço, Mateus, capítulo cinco e seguintes. Bem-aventurados sereis, meus amigos, se lerdes esses capítulos em voz alta. Digo mais: façam aí um jogral. Procurem o padre Ricardo que ele lhes ensinará como fazer. Brinquem com as palavras. Jesus usava-as com muita elegância, com por exemplo na passagem em que Ele diz: 'Por que andais ansiosos com o que havereis de comer ou de beber? ... Olhai as aves do céu... Olhai os lírios do campo... A cada dia basta o seu mal...' Meus amigos, eu insisto, leiam em voz alta. Cantem. A boa nova nasceu para ser cantada, declamada, lida. E sentida, bem no fundo do coração. O padre Ricardo, que é um grande artista, se não sabem, os ensinará tudo!

Finalizando, gostaria de ensinar uma técnica que tenho aprendido com as minhas irmãs carmelitas: façam todos os dias suas preces, logo ao acordar, de pés no chão, olhando o nascer do sol. A natureza, agradecerá. E os anjos, no céu, terão ouvidos para todos os seus pedidos.
Do amigo e irmão em Cristo, James McNewman. “

Nem é preciso dizer que ele me enganara. Dera-me outra carta para ler, muito comportada e poética, por sinal. O Raimundo, cúmplice dele naquele instante, não se agüentava de tanto rir. Os internos, no entanto, adoraram a carta. Riram muito também do estilo curioso do padre escocês. Um novo ânimo tomou conta deles. Desejavam saber quando chegaria a próxima carta. Disse-lhes que o padre James, na verdade, escrevera não apenas uma, mas uma centenas delas. Remeteria de trinta em trinta, o número de dias máximo que as cartas poderiam demorar no trajeto. Desse modo, eles não ficariam um só dia sem ouvi-lo... Naquele dia aprendi mais uma lição sobre as tais linhas tortas de Deus. E nos dias seguintes, vi-me apuros para aprender e ensinar a fazer os tais jograis...

Durante um ano e meio, ou para ser exato, 547 dias, ele escreveu um carta por dia, ininterruptamente. Foram dias mais que felizes. O padre James alegrou, consolou, e divertiu tanto os nossos internos, que muitos alcançaram a própria cura. O Carneiro, a cada fenômeno de cura, logo diagnosticava: 'esse curou-se por excesso de otimismo' e outras frases do gênero.

O que mudaria o rumo de sua vida, por inclusive que pareça, fora também uma carta. Dessa vez, a de um parente seu do Ceará, informando que a sua parte da herança de família estava lhe aguardando. Doou praticamente tudo o que tinha, distribuindo parte para os amigos, parte para o próprio hospital e partiu. Fomos embarcá-lo e ao Raimundo, em Porto Velho. Raimundo não cabia em si de contente. Iria estudar em alguma universidade, com certeza.

Quando o navio partiu, ele nos acenou e gritou: 'Escrevam-me! Raimundo responderá todas as cartas...'

Um grande amigo esse Carneiro Dias. Um mês depois recebi carta sua e de Raimundo. Estavam muito felizes e saudosos. De vez em quando ainda recebo um cartão seu. Raimundo casou-se e tem uma grande família. E o Carneiro continua o mesmo: irreverente e alegre, escrevendo para os jornais e fazendo suas trovas. Um livros desses de cordel que recebi ano passado, de sua autoria, tinha um título muito sugestivo: 'Como através das cartas encontrei Deus'...”

Fonte: Sidney, Abel. Esboço da Obra-da-vida-inteira. Porto Velho: Edufro, 2003.

Abel Sidney é escritor. Formado em Ciências Sociais e Administração de Empresas, adotou por vocação o magistério e é, atualmente, professor do ensino superior em Rondônia. Sócio da Temática Editora tem trabalhado em programas de incentivo à leitura.

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