Doutrina Espírita

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A dor de ser espírita
        
Lygia Barbiére Amaral

É incrível. A gente passa a vida se esforçando, espremendo as más tendências para caber na roupa apertada que parece nos impor a reforma íntima. Engole daqui, supera dali, cede acolá, perdoa mais além. Tudo em nome do anseio em nos tornarmos pessoas melhores, mais próximas de Jesus, mais dignas de Seu amor. Quando menos esperamos, porém, aprece alguém de dedo em riste, pronto a nos apontar deslizes: “Me admira você, um espírita!”, diz a voz que nos aniqüila como um golpe fatal.

Interessante é que muitas vezes nem existe de fato o tal deslize apontado. Em muitos casos, trata-se apenas de uma distorção da realidade, uma tentativa de defesa de pessoas que erram muito mais do que aquele a quem apontam, como que imbuídos de sarcástico prazer de mostrar que não somos dignos da crença que professamos. Curioso como, nestes momentos, o dito “não espírita” parece revestir-se com a pele do mais purista dos defensores da doutrina.

“Não são os que gozam de saúde que precisam de médico”, costumo responder nestas ocasiões, tomando de empréstimo as palavras do mestre nazareno (Mateus, IX, vv. 10 a 12), e lembrando que o fato de encontrarmos consolo e motivação no que nos ensina a doutrina espírita, por si só, não nos torna uma pessoa perfeita, livre de pequenos e grandes deslizes a que ainda estamos condicionados, como habitantes de um mundo de provas e expiações. Afinal, somos espíritos em pleno processo de amadurecimento e evolução. Não podemos jamais perder esta noção. Só o tempo, a coragem, a paciência e a perseverança nos darão meios de vencer nossas próprias imperfeições. É no esforço de alcançar a auto-iluminação que devemos nos concentrar.

Não adianta ficar discutindo com os nossos acusadores, querendo nos mostrar melhores do que efetivamente somos. Creio que ser espírita é acima de tudo compreender-se imperfeito. Se momentâneo inimigo nos acusa de algo, procuremos buscar a raiz de tal acusação e, na medida do possível, aprimorar o defeito apontado, aproveitando a essência da lição. Se for de todo infundada a crítica recebida, sigamos adiante sem melindres, fixando-nos na alegria da consciência tranqüila, lembrando-nos que o próprio Jesus, em sua passagem pela Terra foi infinitamente mais criticado do que elogiado, embora fizesse tão somente o bem às criaturas.

“Como é que o vosso Mestre come com publicanos e pessoas de má vida?”, dizem os fariseus na própria passagem de Mateus há pouco citada. Por tudo Jesus foi criticado. Por curar aos sábados, por ocupar-se dos pobres e dos desvalidos, por hospedar-se na casa de um rico, por debater com os doutores da lei, por apresentar-se como filho de Deus, por dizer-se nosso irmão. E, ainda assim, o mestre conservou-se humilde e sereno. Em nenhum momento eximiu-se de fazer a sua parte na missão que havia escolhido, de seguir rumo à própria iluminação, embora fosse já um espírito incomparavelmente mais iluminado do que todos os homens que habitavam a Terra naquela época.

E, de tão bom, tão generoso que era, ainda preocupou-se conosco, e aconselhou-nos amorosamente a reconciliarmo-nos, o quanto antes, com nossos inimigos. “Quando o Senhor nos aconselhou a amar os inimigos, não exigiu aplausos ao que rouba ou destrói, deliberadamente, nem mandou multiplicarmos as asas da perversidade ou da má-fé. Recomendou, realmente, auxiliarmos os mais cruéis; no entanto, não com aprovação indébita e sim com a disposição sincera e fraternal de ajudá-los a se reerguerem para a senda divina, através da paciência, do recurso reconstrutivo ou do trabalho restaurador. O Mestre, acima de tudo, preocupou-se em preservar-nos contra o veneno do ódio, evitando-nos a queda em disputas inferiores, inúteis ou desastrosas” – nos explica Emmanuel, na mensagem “Inimigos”, do livro Pão Nosso, psicografado por Chico Xavier (Brasília: FEB, 1950).

Em outras palavras, a preocupação de Jesus era de que, ao igualarmo-nos ao inimigo, na vã tentativa de rebater o ódio que este nos destinasse, acabássemos por tropeçar em nossas próprias imperfeições e fraquezas, aprisionando-nos, com isso, na teia invisível da mágoa e do ressentimento e atrasando, por conseguinte, nossa caminhada evolutiva. Pela mesma razão, o mestre nos recomenda não nos arvorarmos em ir pregar aos gentios (Mateus X , v. 5 a 7). Não porque o mestre não se preocupasse com o futuro daqueles que respiravam ainda na escuridão proporcionada por uma total descrença (gentios era a maneira como eram conhecidos na época, os chamados povos pagãos, sem qualquer base religiosa). Mas porque compreendia não estarmos ainda preparados para trabalhar na conversão de espíritos endurecidos.

“Essas palavras podem também aplicar-se aos adeptos e aos disseminadores do espiritismo. Os incrédulos sistemáticos, os zombadores obstinados, os adversários interessados são para eles o que eram os gentios para os apóstolos”, diz o Evangelho segundo o espiritismo, no cap. XXIV, item 10. Quem nunca discutiu com pessoas que se comprazem em criticar gratuitamente e sem nenhum conhecimento prévio tudo o que ser refere ao espiritismo? A princípio nos aproximamos imbuídos dos melhores desejos, imaginando estarmos diante da oportunidade bendita de levar um pouco de luz a estas pessoas. Contudo, após algum tempo de conversa, na maioria das vezes já estamos irritados, exaltados, em não raras ocasiões, saímos dali até mesmo transtornados, com raiva da pessoa a quem antes desejávamos fazer o bem, completamente enevoados pela sintonia errada a que nos lançamos. Daí o alerta de Jesus.

Segundo nos ensinou o próprio mestre, a melhor maneira de convencer os nossos adversários não é através do diálogo exaltado, nem da doutrinação obstinada. A única forma de mostrar a eficiência daquilo que pregamos é o nosso exemplo. “Deixai brilhar a vossa luz”, “não ponhais a candeia debaixo do alqueire”, alerta-nos o nazareno. A fé sincera, assumida e praticada, o trabalho no bem, a reforma íntima, contínua e perseverante, mesmo a despeito de todos os comentários desanimadores. A soma de todos estes procedimentos é que vai fazer com que o nosso exemplo possa iluminar a muitos que ainda se encontram na escuridão.

Que o ano novo possa ser de muitas candeias brilhando sobre caixotes de paciência e boa vontade. Que todos aqueles que elegeram o espiritismo como sua bússola na árdua tarefa evolutiva, possam emitir com seu exemplo a luz da esperança para toda a humanidade. Não a esperança de uma perfeição aparente, fútil e irretocável, mas a esperança daqueles que se esforçam para atingir, com o seu melhor possível, uma condição de seres um pouco mais evoluídos, um pouco mais felizes, um pouco mais irmãos.